terça-feira, 10 de janeiro de 2012

O rei vai nu

Despojo-me de tudo o que trouxe para o meu covil.
Escarro para um canto a amargura e alegria, fáceis produtos do dia-a-dia
Que tanto em enchem o frontispício de não presta,
Removo-me do mundo como um resquício penado de um parente desconhecido
E grito em fúria para os restos carcomidos que tenho para jantar.

São horas de gentes decentes e de família repousarem nas suas camas
Engomadas, rectas e frias, apaparicadas por todos os truques de conforto,
Religiosamente executados pela mulher da limpeza
Que visita a casa três vezes por semana a trinta e cinco euros ao dia.

Mas aqui estou eu, noctívago associal, só na minha liberdade silenciosa,
Acompanhado pela luz artificial, a nicotina e o uivo dos rafeiros
Em explosões entrópicas de arte e ócio, cativado pela tão temida madrugada,
Essa puta sarnenta de lendas de fantasmas,
Lapidada pelo conveniente horário das nove às cinco!

Solto suspiros, ela é minha por mais ninguém a tomar!
Um irónico prémio de consolação só para mim, é tudo meu,
A rua, as árvores, as pedras, os carros, os pássaros, as luzes,
Sou um rei no castelo, e tenho como rainha a manta rota que é o céu
E como súbditos os ilustres e desconhecidos inaptos sociais,
Que se vendem, injectam e tremem debaixo de um pedaço de cartão,
Metade dos quais mandaria à morte certa
Só para me sentir mais sozinho.

Em que dia deixei esta malícia entrar pela porta da minha casa?
E em que dia tomei aos lábios as suas pernas escancaradas,
Desprovido de qualquer tipo de empatia à restante massa bípede?

Em que madrugada deixei que me matassem a criança
E me trocassem por um solitário rei de nenhures?

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