quarta-feira, 1 de abril de 2009

Vermelho

O sonho acabou.
Ele acordou como de costume: tarde, suado, babado e mal-cheiroso, como qualquer homem se sentiria num vespertino momento de calor. Levantou-se morosamente e caminhou, num passo nú e húmido até à casa de banho.
Olhou-se ao espelho.
Sentía-se notoriamente bonito naquele dia. Analisou a raiz dos seus cabelos, o grau de branco dos seus dentes, o tamanho da sua barba escura. Acariciava involuntariamente a sua barriga peluda e tanto-quando flácida, em todo este processo coçando a perna direita com a unha do dedo grande do pé esquerdo. Entrou no banho, e lavou as impurezas nocturnas de si. O castanho cabelo já um tanto quanto grande demais para ser curto, o rosto marcado pelos sinais do acne...
Saíu e cuidou escrupulosamente da sua barba. Cortou todos os incómodos pêlos em que a sua vista poderia poisar. Todos. Até ao fundo do poro. Dolorosamente, até...
Vestiu-se.
Ele não era uma figura particularmente notória. Era simples, uma figura tipo da sociedade comum e invisível. A sua camisa de flanela básica, as suas calças de ganga, as sapatilhas de marca branca... Um número.
Comeu o tardio pequeno-almoço.
O prometedor irresistível sabor achocolatado dos cereais não alterou em nada o seu dia. Souberam-lhe a amido modificado e corantes artificiais, o paladar que toda a vida lhe haviam proporcionado. Sorveu o restante leite poluído de pó de cacau do mesmo modo insípido, sem pestanejar, deixando escapar finos fios esbranquiçados pelos lábios tangentes com a taça, poisando-a vagarosamente então, erguendo o pesado corpo da cadeira como se fosse essa a última cadeira onde pudesse recostar-se. Não se apressou nos restates momentos da sua higiene; o lavar de dentes e o colocar do gel eram um ritual imprescindível, religioso até, aquando do erguer dos seus fios de cabelo quais colunas de um sagrado templo. Voltou ao seu quarto, pegou na sua mochila previamente preparada na noite anterior, e colocou-a às costas por uma alça apenas.
Saíu de casa. O silencioso adeus à figura maternal retorquiu-se com um irromper em choro desenfreado, quase lunático, sobre os ladrilhos do corredor de entrada, batendo fervorosamente a cabeça contra o chão. Não houve reacção. Apenas um fechar crú da porta, um estrondoso gesto seco e involuntário terminando no "click" metálico da fechadura. Esperou calmamente pelo elevador, desceu na companhia dos restantes condóminos, que lhe acenaram um cumprimento impessoal. Replicou o gesto, segurou na porta para saírem, sorriu e chamou puta à vizinha.
Caminhou pausadamente pela cidade.
Evitou contornar a escola à qual deveria ter ido, tal como todos os pontos de encontro de pessoas conhecidas. Não havia interesse em socializar. Apenas aquele deambular pausado, pensativo mas decidido, enquanto a confusão de carros se gerava nas movimentadas ruas, buzinando a tom mal educado e raivoso o retorno a casa da alta classe operária. Esperou que estes parassem nas passadeiras e respeitou os sinais luminosos para peões. O seu civismo era rígido, em detrimento do seu meio envolvente. Deixou-se mover pela íngreme subida até ao destino premeditado.
O local de encontro entre a linha do comboio e a ponte que se preparava para o transportar.
Parou e olhou para o rio.
Curiosos pedestres que passeavam os cães e suas famílias (do mesmo modo, subentenda-se) olhavam para o rapaz que ali jazia, estático, perigosamente á berma do encontro entre ponte e carrís. Tirou calmamente a sua mochila, de aparência vazia e mole, e dela retirou um objecto tão pequeno que lhe cabia na palma das mãos. Sem olhar em redor, tirou a tampa, e colocou nos seus lábios um forte baton vermelho.
E então...
Pulou.

1 comentário:

Vincent DeVille disse...

Um Magnifico crescendo de monotonia apitementada de eloquência que torna qualquer momento, desde o mais nobre ao mais reles, em pura forma de arte. Muito bom, meu caro!